Escarra nessa boca que te beija!"
Seu canto falso destila a peçonha
Tão logo as tolas pessoas constatam-no!
Deitada numa ensangüentada fronha
Suas línguas em flecha espalham tétano
De um inferno ao qual irá e nem sonha!
A vida em sofridas partituras...
Era uma vez, numa madrugada de domingo...
Pedro disse à Maria tão logo sua distância permitisse diálogo:
– Eu posso explicar, não é isso que você está pensando...
Maria olhou aquele cenário e, perplexa, respondeu:
– O que aconteceu com nosso apartamento!? Por que os bombeiros e a polícia estão aqui!? Pedro, o que está acontecendo?
– Calma, amor, nada de pânico... Primeiro, não fui eu que comecei.
– Começou o quê? – Indagou Maria a seu noivo.
– O incêndio.
– Incêndio!? Como assim!?
– Vou contar como tudo começou, mas deixa eu terminar tudo, depois você fala, certo?
Com a afirmação nervosa da cabeça de Maria, Pedro começou seu relato:
– Eu estava em nossa futura cama, vendo um filme. Mas me irritei com o filme e fui ler um livro, você sabe, os livros são sempre melhores que os filmes... O livro contava uma história muito triste, que me fez lembrar da minha família. Eu comecei a chorar muito. Você lembra amor? Eu tinha sofrido um acidente e não lembrava de ninguém. Tudo bem que eu só podia pensar no meu irmão, por ser o único parente vivo que eu tenho, mas ainda assim é família...
Você lembra?
Maria respondeu que sim duas vezes sem entusiasmo, num tom de “continue, continue”; não esquecendo que o irmão mais novo dele estava morando com eles por serem os únicos sobreviventes da família de Pedro.
– Certo – continuou o noivo – Então eu fui até o quarto do meu irmão, desvirei o chinelo dele (acredita que ele deixou de novo o chinelo virado!?) e o cobri (ele estava parecendo um anjinho) e depois fui secar minhas lágrimas no banheiro. Eu estava tremendo tanto que deixei o pote de lenço de papel cair da pia. Agachei-me para pegá-lo e quando levantei... Vi uma sombra passando atrás de mim pelo espelho!
A isso Maria reagiu com um espanto mesclado com suspeita. Mas logo viu que o noivo não teria motivo pra mentir, afinal seu apartamento (que ainda não tinha sido totalmente pago) estava
– Com um pouco de medo eu fui até o quarto do meu irmão, eu jamais me perdoaria se algo acontecesse a ele! Peguei o meu celular e tentei ligar pra polícia, mas... Ele estava sem sinal. Me vi obrigado a acordar meu irmão! Precisávamos sair dali! Acordei-o e decidimos nos dividir para procurar uma saída; provavelmente o bandido teria trancado as saídas! Na verdade ele relutou um pouco. Normal o irmão mais novo não querer se separar do mais velho, mas ainda assim decidimos nos separar, mesmo sabendo que a união faz a força.
Houve uma pausa pra respirar. E em seguida o resto:
– Eu fui pela cozinha e descobri que lá meu celular tinha sinal. Eu liguei e chamei a polícia. Pude dizer o número do prédio, mas o do apartamento não foi possível. O bandido havia tomado meu celular.
Espantei-me com sua aparição repentina, mas não me deixei abalar! Vi que ele era chinês...
Interrompendo o fluxo da narrativa, Maria perguntou com rapidez, tropeçando nas palavras:
– Um chinês? Como ele era?
– Como ele era!? Ora, chinês é tudo igual, como vou saber? – respondeu Pedro impaciente. Não esperando outra pergunta de Maria, ele continuou:
– Enfim, daí eu olhei para o chinês e vi que teria que enfrentá-lo. Começamos a brigar e foi um quebra-quebra pra tudo quanto era lado. Eu comecei vencendo, mas depois que eu o derrubei, lembrei que é dando que se recebe, e que não devemos fazer aos outros o que não queremos pra nós mesmos. Por isso parei de bater e fui procurar a saída. De repente, vejo meu irmão (como todos os irmãos mais novos: uma peste) saindo pela janela e me deixando pra trás! Coitado, ele caiu em cima de um feirante e desmaiou com uma melancia no pescoço. Tiraram muita foto dele... ele deve aparecer na capa do jornal amanhã. Ah, sim! Daí, como eu me distraí com meu irmão (e com o barulho da barraca) o chinês voou para cima de mim e me bateu muito, muito mesmo. Numa dessas, ele me arremessou contra o fogão e meu peso arrebentou a mangueira do gás! Por um instante eu achei que ia ser vencido, mas minha força de vontade superou minha fraqueza e inexperiência diante das artes marciais do chinês, e consegui vencê-lo com um golpe só! E eu estava certo nas minhas suspeitas! O chinês era o mordomo! Eu devia saber, sempre é o mordomo o culpado!
Maria parecia cansada só de ouvi-lo falar.
– Então eu corri até o extintor para apagar a lareira e impedir a explosão. Mas o nosso cachorro comeu o papel com o código que abre a porta do extintor, um pouco depois de você ter saído para fazer compras. Então eu tive uma idéia e me protegi da explosão!
Antes que Maria perguntasse como ele fez isso, Pedro continuou vigoroso:
– A polícia chegou então. Houve a explosão e o prédio ruiu. Os policiais e os bombeiros acharam que eu tinha morrido... Mas!
(Maria deixou escapar um abafado “mas” como um eco, mostrando todo o interesse na história).
– Mas eis que eu me levantei com a camisa rasgada, a pele suja de cinzas, e o bebê no colo!
Maria deu um pequeno solavanco e indagou:
– Espera um pouco... que bebê?
Pedro pareceu um tanto espantado, e isso irritou mais ainda Maria.
– ... É o bebê da vizinha! – Disse Pedro.
– Bebê da vizinha!? Você espera que eu caia nessa!?
– Não amor, espera, eu posso explicar. Não é isso que você está pensando...
– Como você pôde me trocar por aquela lá? O que ela tem que eu não tenho? E não é o que eu estou pensando Pedro – rugiu Maria – é o que estou ouvindo você falar! E quem fala o que quer, ouve o que não quer: Não quero mais saber de você! Está tudo terminado!
Pedro desesperado tentou a última alternativa:
– Amor, não foi isso que quis dizer... e o problema não é você, sou eu... mas enfim... eu sei que é clichê, mas... eu te amo.